Histórias de Vida e Desafios no Campo
Elisabeth Vitor, com seus 59 anos de idade, nos oferece um vislumbre de uma dura realidade no trabalho agrícola brasileiro, tendo começado a trabalhar nas lavouras aos oito anos. Sua história de mais de cinco décadas é pontuada por experiências em plantações de feijão, colheitas de cana-de-açúcar e, principalmente, no cultivo de café no sul de Minas Gerais. Ao longo desse extenso percurso, Elisabeth conta com um parco registro formal de emprego em sua carteira de trabalho, com apenas três entradas temporárias.
Refletindo sobre sua própria situação, Elisabeth desabafa: “Embora tenha nascido muito tempo após a abolição da escravidão no Brasil, sinto que a liberdade nunca realmente me encontrou”. Ela lembra dos tempos em que trabalhava em troca de roupas usadas e ainda hoje persiste em suas atividades, pois não conseguiu se aposentar. Apesar de ter certeza de ter vivido situações de trabalho análogo à escravidão, nunca passou por um resgate formal por auditores do MTE, processo que não só garantiria seus direitos trabalhistas, mas também a incluiria em políticas públicas de assistência social.
Estatísticas e Realidade no Trabalho Rural
Entre 2003 e 2023, o cenário de trabalho rural no Brasil registrou 1.857 mulheres libertadas de condições de trabalho análogas à escravidão. Dessas, 69% são identificadas como negras, sejam pretas ou pardas. Os números, analisados pelo Projeto Perfil Resgatado da Repórter Brasil, revelam que o meio rural concentrava 83% das 2.244 mulheres resgatadas nessas duas décadas.
Minas Gerais desponta no levantamento como o estado com maior incidência desses resgates, somando 436 casos ao longo de 21 anos. Essa estatística representa aproximadamente 23% de todas as ocorrências registradas no país. O auditor fiscal Marcelo Gonçalves Campos, do Ministério do Trabalho e Emprego, explica que tais atividades frequentemente se associam ao tráfico de pessoas e à migração forçada para ambientes degradantes de trabalho. Enquanto os homens são mais propensos a migrar, as mulheres também se veem presas em condições similares, muitas vezes sem alternativas.
Atividades que Escravizam
A pecuária, com uma expressiva representatividade de 21% nos casos de escravização feminina no Brasil, computou 471 casos em 21 anos, sendo uma das atividades que destacam o papel da mão de obra feminina em funções tradicionalmente masculinas. Lívia Miraglia, advogada da UFMG, ressalta que as mulheres são cada vez mais vistas em funções como conduzir gado, trabalho antes considerado exclusivamente masculino.
O setor de café segue com 17% de todos os resgates realizados, totalizando 372 casos. O auditor Antonio Carlos Avancini expõe que as condições das plantações de café, situadas em terrenos acidentados, seriam ideais para o trabalho manual feminino. Em muitos casos, essas mulheres são preferidas por sua “delicadeza” no manuseio de pés de café mais jovens.
Na produção de carvão vegetal, 199 mulheres foram resgatadas ao longo de 21 anos, correspondendo a 9% do total. Esse segmento é conhecido pelos problemas crônicos de precarização, especialmente em regiões como Minas Gerais, onde o carvão é essencial para indústrias de ferro-gusa.
Impacto e Transformação
Nas lavouras de cana-de-açúcar, 157 mulheres foram resgatadas, representando 7% do total. Marcelo Campos observa que, embora o trabalho seja predominantemente masculino, as mulheres participam, especialmente no corte de “bituca”. Miraglia ressalta que muitas vezes o papel das mulheres nestas fazendas envolve atividades não mecanizadas.
Maria Samara de Souza, da Contar, aponta que o trabalho escravo feminino é subestimado. Durante fiscalizações, as atividades de cuidado realizadas por mulheres, como cozinhar, são muitas vezes negligenciadas. Campos, do MTE, sustenta que as equipes de fiscalização são treinadas para identificar todas as formas de trabalho escravo, incluindo as que envolvem mulheres.
Por fim, a advogada Tatiana Bivar destaca o reconhecimento da necessidade de incluir mulheres na fiscalização, especialmente em casos que envolvem exploração sexual ou trabalho doméstico. Essa abordagem reflete a transformação contínua das políticas públicas em consideração às questões de gênero.
frentes trabalho para abertura pastagens, mulheres cozinham condições análogas às escravo (Foto: Divulgação/MTE)
Fonte: Repórter Brasil

