Natural da tribo indígena Terena, no Mato Grosso do Sul, a chef Kalymaracaya Mendes Nogueira é a personificação das lutas cotidianas da mulher empreendedora na cozinha.
Formada em turismo e gastronomia, além de pós-graduada em História e Cultura Indígena e Afro-Brasileira, Kalymaracaya tem rompido estereótipos de gênero e outras resistências em busca de mais protagonismo para a cultura local.
Única chef indígena no Brasil, Kalymaracaya combina ingredientes naturais da terra e referências contemporâneas, fazendo brilhar a chamada gastronomia ancestral.
Apesar de ainda não ter restaurante próprio, suas criações agora ganham outros espaços com o movimento Juntas Na Mesa.
Como forma de dar visibilidade aos seus desafios e inspirar mais mulheres na gastronomia, Kaly foi convidada pela marca Stella Artois a fazer parte da iniciativa.
Ao lado de outras renomadas chefs que trazem a representatividade de raça, idade e outros recortes, Kalymaracaya tem a oportunidade de contar a sua história, e também, por meio de um menu especial, apresentar suas origens a mais pessoas.
Kaly se diz orgulhosa pela conquista, mas não quer estar sozinha nesse lugar. “É muito duro saber que sou a única. Essa falta enorme de visibilidade me tocou profundamente. Quero quebrar essas barreiras. Fazer que o meu povo seja visto”.
Em entrevista ao Terra Nós, Kalymaracaya contou um pouco da sua história.
Protagonismo da gastronomia indígena
Na minha trajetória tudo foi muito difícil e pesado. Até hoje muitas portas continuam fechadas. Espero que a partir desta oportunidade no Juntas Na Mesa, as pessoas vejam não apenas a mim, mas toda a comunidade indígena e nosso valor.
Estamos aqui há muito mais tempo que qualquer outro povo. Merecemos respeito. Nossa cultura presa muito pela preservação, somos apegados a terra, ao meio ambiente.
Precisamos deles para sobreviver. Então, estou muito contente com essa visibilidade porque minha história vai poder alcançar mais pessoas.
Referências na gastronomia
Minha referência maior é a minha avó. Desde pequena eu achava muito bonito vê-la cozinhando. Eu ficava sempre ali no pé dela pedindo, ‘vó me ensina’. Ela dizia: ‘kalivonó (menina), vai buscar para mim isso, aquilo’. Eu sempre estava disposta a ajudar porque teria alguma coisa para comer, não era boba.
Cresci sabendo que a gastronomia indígena é muito rica, tão bonita, que precisava ser mostrada. Mas já adulta vi uma realidade completamente diferente.
Eu vi chefs que não são indígenas falando coisas aleatórias que nem existem. Aí eu fui buscar: quem é o representante cozinheiro da minha comunidade? Não tinha ninguém. E quando não tem representante, as portas ficam fechadas. Então, com a força dos meus ancestrais, meti a cara, e fui a guerra para tentar ocupar esse lugar. Até hoje é pesado.
A jornada como empreendedora
O que mais me tocou foi saber que não temos nenhuma indígena trabalhando na gastronomia. Hoje, nós, mulheres indígenas, somos professoras, jornalistas, médicas, tantas coisas, mas na gastronomia, é muito duro saber que sou a única.
Isso me tocou profundamente. Essa falta de visibilidade enorme. Quero quebrar essas barreiras. Fazer que o meu povo seja visto. Mostrar que o meu povo é trabalhador e vai à luta.
Alta gastronomia
Pude mostrar a sofisticação da comida indígena no prato que criei para o Juntas na Mesa. Batizei de Escada da Resistência.
Eu retratei ali a realidade nas comunidades indígenas. Meu prato é uma releitura do Poréu, muito tradicional na cultura Terena. É um prato à base de mandioca, um sagu rústico que aprendi com a minha avó. Fiz uma versão inédita, colocando cor e sabor no prato. A versão tradicional não tem açúcar, nem sal, nem nada.
Pensei em refazer, deixando o prato em três versões mais representativas. A primeira versão na cor azul significa a masculinidade.
Na minha comunidade, só o homem vai para a guerra. Eu tive que quebrar esse ciclo mostrando que nós mulheres também somos fortes.
O segundo prato, eu coloquei o verde da Taioba e do Ora-pro-nobis. Esse verde representa as forças que eu resgatei dos meus ancestrais para chegar onde cheguei. E o último prato trouxe o vermelho, representando, nós, mulheres, nossa feminilidade e luta
Movimento de slow food e a rapidez do mundo moderno
Nós indígenas existimos antes do slow food. Só que não tinha esse nome. Agora tem. O preparo da comida do meu povo começa muito antes da plantação. A gente escolhe a planta, a semente. Nós presamos muito a cada etapa do preparo até a mesa.
Os animais, a nossa terra, a nossa língua porque são deles a nossa sobrevivência. Com o conhecimento dos meus ancestrais, eu cultivo conforme a lua. Infelizmente, esse tipo de conhecimento está se tornando cada vez mais raro, está se perdendo.