Situação Atual das Terras Indígenas em Roraima
“ANTES NÃO EXISTIA ESSA POLUIÇÃO SONORA de aviões e tratores em operação. Tudo era calmo.” Esta é a lembrança que vem à mente de Jabson Silva, um líder do povo Macuxi de 38 anos, quando reflete sobre a vida na comunidade Morcego, situada em Roraima, antes da chegada extensiva da produção de soja nas proximidades.
A comunidade Morcego é composta por aproximadamente 73 famílias, englobando indivíduos dos povos Macuxi e Wapichana, totalizando cerca de 285 pessoas. Localizada na Terra Indígena Serra de Moça, a cerca de 60 quilômetros da capital Boa Vista, a vida mudou drasticamente após a introdução da plantação de soja em suas redondezas em 2018. A partir desse início, ocorreram pulverizações de agrotóxicos por meio de aviões, afetando diretamente o cotidiano dos moradores.
“Os aviões borrifavam agrotóxicos na fazenda próxima, mas o retorno era feito sobre a nossa comunidade, contaminando também nosso território. Isso ocasionou problemas de saúde em diversas pessoas, incluindo crianças que apresentaram irritações na pele e nos olhos, além de problemas respiratórios em idosos, como meus avós”, relembra Jabson, que é estudante de Gestão Territorial na Universidade Federal de Roraima (UFRR).
Impactos do Cultivo de Soja nas Terras Indígenas
A realidade enfrentada por Morcego não é isolada. Um estudo inovador realizado pelo Programa de Formação em Ecologia Quantitativa do Instituto Serrapilheira, desenvolvido esclusivamente para a Repórter Brasil, revela que 26 das 33 terras indígenas de Roraima, cerca de 80%, estão rodeadas por plantações de soja.
Dentro destas 26 afetadas, 24 são identificadas como “ilhas” de terras indígenas. Esta classificação refere-se a territórios menores, fragmentados e separados de outras áreas semelhantes. A Terra Indígena Serra de Moça, que abriga a comunidade de Jabson, é um exemplo claro desse contexto.
Expansão do Agronegócio na Região
A crescente demarcação de terras indígenas como “ilhas” é um dos fatores que têm facilitado a expansão da sojicultura no estado, alimentada por incentivos governamentais e uma demanda internacional crescente. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que, entre 2017 e 2024, a área plantada com soja em Roraima saltou de 18.725 hectares para impressionantes 117.215 hectares, mostrando um crescimento de 526%.
O volume de produção também viu um significativo aumento, passando de 45.077 toneladas para 416.650 toneladas nesse mesmo período. Em 2024, a soja tornou-se o produto mais exportado de Roraima, com a China, Guiana, Venezuela e países da União Europeia como Alemanha, Itália e Grécia figurando entre os principais destinos, conforme informações do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, através do Portal Comex Stat.
Consequências para a Biodiversidade Local
A invasiva expansão da soja em Roraima também trouxe à tona preocupações ambientais significativas. O instituto Serrapilheira analisou a biodiversidade em 20 desses territórios indígenas, identificando um total de 1.930 espécies, que incluem anfíbios, répteis, mamíferos, aves e árvores. A pesquisa sublinhou que a conservação da biodiversidade é mais eficaz em áreas maiores e mais isoladas de TIs, especialmente quando próximas a outras zonas protegidas.
Contudo, o cultivo da soja emergiu como um fator adverso, impactando particularmente os anfíbios e as aves. “Nossos achados reforçam que quanto mais preservadas e conectadas as áreas indígenas estiverem, maior será a preservação de sua biodiversidade”, afirma Carson Oliveira, mestre em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coautor do estudo.
Barbara Lima-Silva, que coassinou a pesquisa como mestranda em Ecologia Aplicada na USP, argumenta que um isolamento mais pronunciado dessas terras poderia beneficiar até mesmo aqueles fora das comunidades indígenas. “A relevância das terras indígenas na manutenção de serviços ecossistêmicos que beneficiam todo o país já está confirmada”, enfatiza.
Viajantes rumo à comunidade Morcego precisam encarar um percurso de uma hora pelas vias de terra que serpenteiam através das típicas formações serranas e vegetação savânica de Roraima. Ao longo do caminho, o ambiente natural original cede espaço a vastas plantações de soja, um testemunho do crescente impacto agrícola na região.
O vizinho mais próximo encontra-se a apenas 250 metros, separado apenas por uma cerca rudimentar na propriedade do avô de Jabson, Jaime Silva, de 77 anos. Apesar de uma série de cercas, incluindo aquelas de alambrado, separam o quintal repleto de plantas nativas da área de cultivo, os efeitos da plantação de soja se fazem sentir intensamente na comunidade.
Repercussões para os Habitantes Locais
Os membros da comunidade Morcego relatam a constante perturbação causada pelo ruído dos maquinários agrícolas, que afasta a fauna local, dificultando a caça, prática essencial para a subsistência de algumas famílias. Além disso, a colheita gera a emissão de poeira e o cheiro persistente de produtos químicos chega até as residências.
Nayandre Nagelo da Silva, irmã de Jabson, destaca o desconforto advindo do cotidiano na comunidade. “É sufocante respirar aquela poeira. Para quem vive mais próximo das serras, a situação é crítica, e o cheiro de veneno é constante”, relata ela, que é merendeira e antiga agente territorial da área.
Em 2021, a comunidade vivenciou um incidente crítico com a pulverização aérea de agrotóxicos, levando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a multar os proprietários das plantações em R$ 103 mil e a proibir voos de pulverização nas proximidades. Contudo, infrações subsequentes resultaram em mais penalidades, acumulando multas no valor de R$ 307,5 mil, e, em 2023, uma decisão judicial suspendeu todos os voos de pulverização agrícola.
Atualmente, a aplicação de produtos químicos é feita por máquinas no solo. Apesar de as medidas serem vistas como um avanço pela comunidade, os moradores ainda temem os efeitos a longo prazo dos agrotóxicos na saúde e no ambiente.
Além dos efeitos diretos, o povo de Morcego se preocupa com a diminuição das plantas medicinais e tradicionais em sua área, como o caimbé e o mirixi, que já são difíceis de encontrar devido ao uso intensivo de pesticidas nas proximidades. “Antes colhíamos mirixi frequentemente, mas agora a escassez é evidente, e nossos cultivos locais estão cada vez mais inviáveis”, alerta Nayandre.
Políticas de Incentivo e Impactos Socioeconômicos
Bruno Sarkis, pesquisador do Laboratório de Hidrografia e Climatologia da Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), aponta que a expansão da soja em Roraima está intrinsecamente ligada às políticas estaduais que incentivam o agronegócio desde o início dos anos 2000. Recentemente, essas políticas têm favorecido ainda mais o crescimento do setor.
“O fenômeno não é isolado, mas parte de um movimento maior de apropriação da terra por grandes produtores, principalmente vindos do Sul e Centro-Oeste do Brasil”, explica Sarkis. A legislação estadual, como a Lei de Terras de 2019, que aumentou o limite de aquisição de propriedades e reduziu a obrigação de reserva legal em propriedades rurais, facilitou ainda mais a expansão da soja.
Essas mudanças, aliadas ao governo do governador Antonio Denarium, ele próprio produtor de soja, têm promovido um forte crescimento do agronegócio em Roraima. No entanto, enquanto a produção agrícola aumenta, beneficiando economicamente o estado, a concentração de riqueza permanece nas mãos de poucos.
O governo estadual de Roraima ainda não se manifestou sobre essas questões, mas o espaço está aberto para futuras considerações e posicionamentos.
Esta reportagem é fruto de uma iniciativa colaborativa entre jornalistas e cientistas promovida pelo Instituto Serrapilheira e o Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (CLIP), com foco na biodiversidade e nos serviços ambientais na Amazônia.
Arte: Rodrigo Bento/Repórter Brasil
Fonte: Repórter Brasil

