Presente no prato da população local de Florianópolis (SC), há mais de 200 anos, o berbigão pode ser encontrado em todo o litoral brasileiro.
Quem frequenta a praia da Daniela ou a da Tapera, em Florianópolis, pode se deparar com um animal que vive dentro de uma concha, que varia de três a cinco centímetros, nos substratos da areia do mar.
Apesar de possuir um tamanho pequeno, o berbigão, como é conhecido popularmente, é considerado um grande alimento para a cultura e tradição da Ilha de Santa Catarina. Mas, afinal, ele é um crustáceo ou um molusco?
Segundo a bióloga e mestre em Zoologia, Ana Karina Calahan, o berbigão é um animal filtrador classificado dentro do filo dos moluscos.
“Dentro dos moluscos, a gente vai ter o berbigão sendo um molusco bivalve, um animal de corpo mole que secreta uma concha com duas partes, chamadas de duas valvas.”
Conhecido como vôngole, marisquinho, bergão, papa-fumo e maçunin, o berbigão pode ser encontrado em todo o litoral brasileiro, sendo conhecido por nomes diferentes pelas regiões do país.
“Não tem um local específico. Em algumas praias ocorre mais ou menos. Eles são espécies que ficam soterradas. Quando a maré baixa esses bichinhos vão se enterrando ali na areia, então fica fácil de pegar. Por isso que existem os catadores de berbigão ou tem gente que chama de mariscos, uma denominação mais geral ainda”, explica a bióloga.
Tradição manezinha
Nei Rose, 60 anos, é uma das pessoas que teve a sua vida marcada pela extração do berbigão nas praias da Ilha.
Junto dos seus vizinhos e irmãos, a aposentada catava o animal na década de 70, na prainha no bairro José Mendes, em Florianópolis.
“A gente catava porque era uma fonte de alimento e tínhamos necessidade. Aí a gente voltava com uma lata cheia de berbigão, tudo branquinho, tão lindo. Depois a gente descascava ele e espalhava a casca pelo quintal. Dava pouco berbigão, mas servia para uma refeição.”, relembra Rose.
Segundo o pescador Vidal Demétrio, a extração do berbigão pode ser feita manualmente, com o uso das próprias mãos, ou por meio do uso de um ancinho, uma ferramenta usada em pesca.
“É bem fácil de ser extraído. Aqui em Florianópolis o pessoal extrai muito o berbigão para mandar para São Paulo, por isso teve uma diminuição”, explica o pescador.
E o berbigão, sumiu?
O tradicional alimento da cultura e identidade de Florianópolis entrou em alerta em 2015, quando houve uma diminuição de 90% da espécie na Resex (Reserva Extrativista de Pirajubaé), a primeira unidade de conservação marinha no Brasil, criada em 1992 e localizada na Baía Sul da Ilha de Santa Catarina.
De acordo com Laci Santin, analista ambiental da Resex, foi uma conjunção de causas naturais que levou à diminuição do berbigão em 2015.
“A partir de uma onda de calor intensa de mais de 15 dias e uma grande quantidade de chuvas torrenciais em fevereiro, o berbigão ficou mais frágil. A água ficou turva, mudou a salinidade e ficou mais doce do que o normal. O ambiente ficou tóxico e o bichinho morreu.”, comenta Santin.
Com a diminuição de 90% da população de berbigão na Resex, 30 famílias que tinham como único recurso financeiro a venda de berbigão, tiveram que procurar outros meios para se sustentar.
“As mulheres, que ajudavam no processo de cozimento, descascando e comercializando esse produto, se viram afetadas de uma hora para outra. Tanto que tiveram que recorrer a outros meios de vida, e, consequentemente, muitas delas deixaram a atividade depois disso.”, conta Laci.
Segundo a analista ambiental, apesar de não representar uma espécie em extinção, a quantidade de berbigão na Reserva Extrativista de Pirajubaé se mantém mesmo que em pequena quantidade.
“Morreram 90%, então, com esses 10% que sobraram, a espécie se mantém, mas em níveis muito baixos.”
O sumiço de grande parte do berbigão na Costeira do Pirajubaé, representa o desaparecimento do alimento que, um dia, já foi a principal fonte de renda da população da região.
“Historicamente era usado a casca para fabricação de cal. A comunidade local coletava o berbigão, tirava o alimento interno e vendia a casca para o dono das caieiras.
Ele vem nessa tradição de ser sempre uma fonte de alimentação e também de renda para as populações mais empobrecidas, porque é um alimento proteico que garante sustento e rende bastante.”, conta a analista ambiental.
O apoio externo à Reserva Extrativista da Marinha de Pirajubaé é uma das formas para ajudar a recuperação de berbigão no local.
“Se morreram 90% os outros 10% vão se recuperar, mas necessitaria de ter um apoio externo para isso. Sozinha, uma população com esse tipo de estresse, não vai se recuperar.”, afirma Laci.
No Mercado Público de Florianópolis
Dentro do Mercado Público de Florianópolis, é possível encontrar o berbigão sendo vendido por R$ 55 o quilo, sem a casca. Entretanto, o preço é considerado alto para um alimento que, um dia, foi a principal fonte de nutrição para as famílias mais carentes da Capital.
“Ao longo do Século 19, o berbigão vai sendo apropriado na cozinha dos moradores da Ilha de Santa Catarina. Ele se torna popular pela grande disponibilidade e facilidade de acesso a ele.”, explica Rodrigo Rosa, historiador na Fundação Catarinense de Cultura.
Apesar da dificuldade de encontrar o molusco e da alta do preço do alimento, quem busca o prato típico da cultura de Florianópolis recorre aos boxes localizados dentro do Mercado Público. Entre eles, está o BOX 32, conhecido na Capital pelo seu famoso pastel de berbigão.
Beto Barreiros, dono e criador do prato que chama atenção no mercado histórico, conta que tinha a vontade de fazer com que o molusco fosse valorizado em Florianópolis da mesma forma que era visto na Itália.
“Quando viajei para Itália, na década de 90, trouxe a ideia de usar o ancinho para extrair o berbigão, que quando passa no fundo só pega um tamanho padrão. Trouxe para cá (Florianópolis) e espalhei essa ideia.”
Além de ser dono do restaurante no Mercado Público, Beto é um dos fundadores do bloco que abre o Carnaval da Capital de Santa Catarina, o Berbigão do Boca.
A festa é reconhecida por fazer homenagens a figuras importantes de Florianópolis e pelo seu tradicional concurso gastronômico, no qual o berbigão é o principal ingrediente.
“O bloco Berbigão do Boca alavancou o berbigão de uma forma, que hoje ele compete com o pastel de camarão, que é o nosso supercampeão.”, explica Beto.